terça-feira, 14 de abril de 2009

A Princesa e o Cabelo

No tempo dos reis, esse tempo antigo em que para além da fauna monárquica também haviam por cá dragões, houve uma princesa, como seria de esperar. Essa princesa era, indubitavelmente, de uma beleza mediana: olhos verde-azulados, nariz um pouco abatatado, boca fina e leve pestanas longas, sobrancelhas bem tratadas, orelhas quase imperceptivelmente grandes em relação ao tamanho do rosto - que não era muito. Tinha uma altura consideravel para mulher, mas mesmo assim a maioria dos homens era maior que a princesa. As suas mãos eram delicadas como a mais fina seda, sempre alvas devido às luvas e à falta de sol.

No entanto, apesar da sua beleza não ser das melhores coisas do mundo, essa princesa era cobiçadíssima pelos homens e invejadíssima pelas mulheres (salvo alguma situação em que os papeis se invertessem e a princesa fosse cobiçada por uma mulher ou outra e invejada por um ou dois homens). E tudo por causa do seu cabelo maravilhoso, o mais bonito á face do planeta a que se convencionou chamar de "Terra".

O seu cabelo, o mais brilhante e sedoso, o mais macio, suave, lindo e apaixonante cabelo preto-asa-de-corvo, era o mais bonito que alguma vez andou por estes lados terrestres e o mais belo que alguma vez andará. Muito orgulho tinha a princesa naquele cabelo.

Ela tratava-o com cremes, mezinhas e apetrechos da altura, ela limpava-o a toda a hora e a todo o instante, ela punha-lhe especiarias e açúcares e mais cremes e frutas e isto e aquilo só para ficar com bom cheiro. E depois era o creme de manga trazida de terras não se sabe bem quais para amaciar, e extracto de maracujá vendido pelo mercador mais bem vestido do reino (que viria a morrer estrangulado por um cachecol que ele vaidosamente punha ao pescoço) para combater a caspa, e sumo de laranja porque a princesinha ficou com sede, e vinagre para o brilho (dizem que os cabelos tendem a ficar arruivados com o vinagre mas o da princesa manteve-se sempre imaculadamente preto-asa-de-corvo), e banha da cobra contra (imagine-se a ironia!) o óleo ("lave vossa majestade o cabelo três vezes com a banha, mas só deixe ficar um minuto, de seguida tire-a com água normal e não ganhará óleo por meses a fio" - pelo número de vezes que a princesa fez o tratamento, poderia viver até aos mil quinhentos e setenta e nove anos que não iria ganhar óleo)... Enfim, tratava melhor o cabelo que o filho que nunca teve (pudera, se nunca o teve... Mas a ideia foi percebida...)!

Numa belíssima manhã nos fins de Abril, em plena Primavera, acorda todo o reino com um grito de horror puro. Oque é que se passa, o que é que não se passa, acabou por se descobrir que o cabelo de Sua Alteza Real, A Princesa, tinha desaparecido sem deixar rasto nenhum (e toda a gente sabe quão importante é o cabelo em investigaçoes forenses! Sem o cabelo não vao a lado nenhum) e ninguém tinha visto ladrão ou vagabunto nas imediações do quarto da princesa.

O problema foi discutido dias a fio, com vários motivos a apontar e vários culpados. Culpou-se o pobre dragão do castelo que, sabe-se lá como, conseguiu libertar-se das correntes que o aprisonavam na cave, subiu até ao topo do castelo, queimou o cabelo da princesa, engoliu as cinzas, desceu até à cave e acorrentou-se novamente a ele próprio, sem ser visto nem notado (o pobre bicho foi abatido após a apresentação desta teoria); culparam-se as alergias que, em sendo Primavera, havia uma grande chance de serem elas as culpadas; culparam-se os ladrões; culparam-se as mulheres invejosas; culparam-se os homens invejosos; culparam-se os feiticeiros, os ogres, os trolls e os pelicanos (devido à falta de coerência, todas as acusações contra os pássaros foram levantadas); culpou-se o mundo inteiro, até que uma criança disse que tinha visto o cabelo da princesa a passar. Riram-se da criança, obviamente. Cabelo, a andar por aí à solta? Onde é que já se viu?! Mas logo à criança juntou-se um adulto, e depois mais outro, e outro, e outro, e até um conselheiro do rei. Até que se começou a achar que talvez a criança inicial tivesse razão.

Ninguém adulto seguiu o cabelo, já era de calcular, estão sempre tão ocupados os adultos... Mas a criança deu-se ao trabalho de o seguir o malfadado e belo cabelo e viu que ele tinha passado a fronteira do reino e estava agora no reino vizinho, à guarda de um príncipe que fazia questao em casar com o cabelo.

O rei, a armada real, a princesa chorosa, a rainha, os conselheiros, os embaixadores, os juízes, os magistrados, os médicos, os trovadores e até o bobo da corte foram, então, ao reino vizinho tentar demover o princípe a devolver o cabelo, mas, qual nao é a surpresa quando descobrem que é o próprio cabelo quem os vai receber.

Entram, enfim, no castelo e fala-lhes o cabelo. Contou-lhes que estava farto de ser tão apaparicado pela princesa, que não merecia isso, que finalmente encontrara alguém que gostava dele por aquilo que ele era e não pela sua beleza, etecetera e tal.

O príncipe que, ironia do destino, era careca, aparece então e leva o cabelo em braços, beijando-o e amando-o pelo ser que ele era e nao pela beleza que lhe estava subjacente.

A princesa e toda a trupe real voltaram para o castelo onde os melhores peluqueiros do mundo trataram de tapar a cabeça da princesa de beleza medíocre e de, pode-se revelar agora, de uma vaidade extrema.

Um conselho, uma moral: A beleza humana tem muitas partes, mas as mais importantes são a de dentro e a de fora. A de dentro, pode ser mudada e transformada de tal maneira que nos podemos tornar na pessoa mais bela do mundo. A de fora, se a de dentro fôr podre, a outra não passará de medíocre.