quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Os Reinos nas Esquinas

Esta é a história de um rapaz, julgar-se-ia ele normal como tantos outros. Mas, como nas histórias normalmente acontece, não o era. Ele não tomou cuidado com o que pediu. Esta é a história de um rapaz que não teve cuidado com o que pediu e acabou tendo o que merecia. Ele e um rei completamente irracional e imoral.

Mas deixemo-nos de palavreado e passemos à história, que isso é o que mais importa.

O rapaz estava na fase em que se passa da criancisse para a adolescência, era louro escuro e tinha olhos verdes. Era magro para a idade, mas de altura tinha o adequado. O rapaz chamava-se Bruno.

Bruno, que ainda vivia na altura em que os reis floresciam por aí como botões de rosas, havendo cerca de um por esquina, certa vez foi chamado à corte de um rei de esquina desses como os há tantos outros. Perante o rei, assustadíssimo (Bruno, não o rei), perguntou a Sua Alteza Real o que desejava de um humilde rapaz, já que havia tantos iguais a ele.

O rei não fez cerimónias e disse-lhe de imediato que a sua esquina ia entrar em guerra com a esquina vizinha e que, mediante uma profecia profetizada por um dos magos da corte ele iria fazer algo de importante para essa guerra. Apenas não fora dito o quê. Parece que o mago morrera de apoplexia e não desvendou esse mistério atempadamente.

Bruno passou então a viver numa ala do castelo que vagara só para ele. O rei pensou que aquele humilde rapaz como os outros era um estratega brilhante, ou um herói esquecido com uma força tremenda, ou um cientista disfarçado de criança capaz de criar maquinaria bélica com um poder destrutivo imenso.
Mas não.

Quando lhe puseram à frente um tabuleiro de xadrez, Bruno perdeu em pouco mais de cinco jogadas contra o bobo da corte.

Quando lhe pediram para ir buscar água ao poço com o maior balde do reino, ele apenas conseguiu andar meio metro com ele às costas, antes de desfalecer por causa da falta de força.

Quando lhe foi pedido que removesse a sua máscara, que já todos sabiam que ele era um cientista, o pobre rapaz ficou tão assustado que correu para o seu quarto, trancou-se e não o viram durante uma semana inteira.

Quando lhe foi pedido para ver os planos de um novo tipo de catapulta, o rapaz disse que não percebia o porquê de estarem a atirar pedras uns aos outros com a ajuda de colheres gigantes, virou costas e foi-se embora.

Por causa de tamanha insolência o rapaz apenas deu vinte passos e logo foi preso e levado para as masmorras do castelo da esquina.

A guerra estava quase a começar e uma pergunta ainda se impunha.

"Então que poder tem o rapaz?"

Foi apenas quando, numa visita que o rei fez a Bruno que lhe surgiu a ideia.

O que sucedeu para o rei ter tal epifania? Muito simples. O rapaz estava com um javali completamente cozinhado à sua frente enquanto lhe dava vigorosas dentadas. Às cinco da tarde, pouco depois da fatia de pão com manteiga e água que foi para o lanche e muito depois da fatia de pão com manteiga e água que compunha o seu almoço.

Sucederam muitas perguntas: "Onde conseguista isso?", "Como conseguiste isso?", "Quem te deu isso?"... E para todas elas Bruno tinha a mesma resposta: "Estava com fome..."

Foi então o bobo da corte (que, afinal, tinha uma mulher e dois filhos, era extremamente interessado por matemática e estratégia e já tinha sido um comediante de sucesso numa outra esquina) quem sugeriu o que tal podia ser.

Sucede que havia uma doença oriental muito rara, que fazia com que as pessoas tivessem sintomas parecidos com os da constipação (Bruno sorveu o ranho que tinha pendurado no nariz), um pouco de diarreia (começou a cheirar mal ao rei e Bruno logo se foi trocar) e a capacidade de ter os seus desejos cumpridos (Bruno regressou com roupas dignas de um principe, que, segundo ele, estariam dentro de um armário branco e alto, que nunca se tinha visto igual no castelo). Eureka.

Estava aí o segredo do falecido mago. Era, de facto, este rapaz quem ia fazer com que a guerra entre as duas esquinas fosse ganha: bastava desejar que a outra esquina nunca tivesse existido. Estranha escolha de palavras. Bastava ter desejado que a guerra não se concretizasse, só que, rei que é rei, quer destruir completamente os seus adversários.

Mesmo que isso signifique um desequilibrio imenso...

Ora imaginem uma figura geométrica. Um quadrado, para facilitar. Tem quatro cantos, quatro esquinas. Agora tirem um canto. Ficam três esquinas com um lado curvo a ligar outras duas esquinas. Deixa de ser um quadrado.

O mesmo aconteceu aqui: aquele mundo passou a ter uma esquina a menos e, de imediato, duas outras esquinas invadiram a esquina de Bruno. O rei imediatamente pediu que fizesse com que essas duas esquinas nunca tivessem existido. E assim aconteceu, como seria de esperar, por causa da doença diagnosticada pelo bobo da corte.

Problemas? Claro.

Vamos voltar ao quadrado. Se se tiram todas as esquinas, cantos, do quadrado, este deixa de ser um quadrado. Passa a ser um único ponto. Sem mais nenhuma ligação. E se não há ligações com nada, como é que o ponto existe? Ou melhor, onde é que o ponto existe? São precisas ligações entre pontos para haver esquinas.

No preciso momento em que as outras duas esquinas desapareceram, o rei, astuto (será?), para evitar mais coisinhas dessas, pediu para que todas as esquinas nunca tivessem existido. E logo ficou o ponto. Sozinho e isolado.

Não demorou muito até a primeira pessoa desaparecer misteriosamente. Em quatro dias, cerca de quarenta e sete habitantes daquela esquina desapareceram quando iam buscar água ao rio. O problema é que o rio nascia noutra esquina e, se essa esquina não existia, não existia rio: apenas um espaço vazio para onde as pessoas estavam condenadas a cair. A esquina estava, portanto, destinada ao poço do castelo, se não queriam morrer à sede. Que, infelizmente, era alimentado por uma correnteza subterrânea que partia de outra esquina. A esquina estava condenada a morrer à sede. O rei pediu para o rapaz anular o desejo, para que o rapaz desejasse que tudo voltasse ao normal. Mas lembram-se do que o rei pediu? Que nunca tivessem existido as outras esquinas. E se nunca existiram, como é que poderiam ser trazidas de volta?

O rapaz, o Bruno, acabou por morrer, como todas as mil setecentas e quarenta e nove pessoas habitantes naquela esquina, rei incluído. Sem nada para poder fazer, sem nunca se lembrarem, cegos que estavam pelo desejo que tudo voltasse ao normal, de pedir a Bruno que desejasse, simplesmente, água.

Um conselho, uma moral: Nunca peças algo que possa estar fora do teu controlo. Por mais aliciante que seja, lembra-te que pode sempre, eventualmente, tornar-se realidade.

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